28 Jun 2021 | Entrevistas
A violência autoinfligida
Teresa – Além da violência contra o outro, existe a autoinfligida. Quais são os métodos de autoagressão apontados pela Saúde Pública?
João Roberto – A Saúde Pública considera o suicídio como uma forma de violência autoinfligida, mas não avalia apenas esse modo radical de autoagressão. Também considera os danos que a pessoa pode causar a si mesma. Nesse caso, envolve atitudes hostis, como a automutilação. O indivíduo arranca os cabelos, bate a cabeça na parede, chicoteia-se, queima-se, rói as unhas até sangrar, morde-se, soca a si mesma, corta-se com lâminas, fere os braços, as pernas e até o rosto. O que leva as pessoas a atitudes autolesivas? Pesquisas sobre o assunto mostram que é uma forma de expressar externamente a dor psíquica ou para fugir dela e transferir o sofrimento mental para o físico. São gestos que podem estar relacionados com pessoas com baixa autoestima e dificuldades de expressar suas emoções.
Esse tipo de agressão aumentou muito depois que pessoas públicas começaram a confessar que faziam isso, como Angelina Jolie e Johnny Depp, dois ícones do cinema estadunidense. A internet também facilitou a difusão dessa prática. Existem sites compartilhados por autoagressores. Ali, eles encontram seus iguais, falam do sofrimento íntimo e se sentem aceitos.
O suicídio é uma das principais causas de morte no mundo e é um problema importante de violência e saúde pública. O número de suicídios hoje é maior que o número de homicídios. As mortes por suicídio, em todo o mundo, superam todas as mortes por violência criminal e guerras, atingindo mais de 800 mil suicídios por ano. Os fatores de risco para o comportamento suicida, entre outros, são psiquiátricos, biológicos, sociais, ambientais e também relacionados ao histórico de vida da pessoa. Para enfrentar com mais êxito o comportamento suicida, há uma longa jornada pela frente que inclui mais pesquisas, orientações para mudanças ambientais e esforços integrados da comunidade e dos sistemas de saúde. É um desafio que espera por eficazes intervenções preventivas, particularmente, da educação socioemocional.
Bibliografia:
1. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório mundial sobre violência e saúde. Suíça: Minimus Graphics, 2002.
Teresa – Você poderia aprofundar esse tema que é razão de tanto sofrimento, refletir sobre sua prevenção?
João Roberto – Posso sim. É um tema forte que me toca particularmente. Compreendo a amargura do suicida e a dor profunda daqueles que convivem com ele. Vamos olhar para alguns episódios históricos, literários e poéticos para ilustrar nossa conversa. No século XIX, a obra romântica de Goethe – Os sofrimentos do jovem Werther – causou impacto entre os escritores e os jovens de sua geração, que ficaram seduzidos pelo sabor gelado da morte. Movido por um romantismo extremado, Werther, apaixonado por Carlota, resolveu suicidar-se:
Veja, Carlota, que não tremo ao pegar a fria e terrível taça por onde quero beber a embriaguez da morte! É você quem ma apresenta e eu não hesito um só momento. É assim que se consumam todos os votos, todas as esperanças da minha vida, todas! Quero bater, gelado e rígido, à porta de bronze da morte! (Goethe)¹
No século XX, Maiakovski, poeta russo, que também se suicida, poetiza sobre a dificuldade de viver:
Nesta vida,
morrer não é difícil.
O difícil,
é a vida e o seu ofício.²
No século XXI, uma revista publica: “Encobertos pelo anonimato da rede, internautas de diferentes nacionalidades têm dito em várias línguas a pessoas muito frágeis, a maioria delas adolescentes: ‘Mate-se’. O suicídio de Simon Kelly, de 18 anos, em Cornwall, na Inglaterra, foi um dos primeiros sinais de que algo de macabro estava acontecendo no reino da internet. No verão de 2001, o garoto aproveitou uma viagem dos pais para acessar sites sobre suicídio com detalhes técnicos de como poderia se matar. Morreu de overdose enquanto conversava com ‘amigos’ virtuais em uma sala de bate-papo. A banalidade dos diálogos travados enquanto o adolescente tirava a vida é chocante. Ninguém tentou dissuadi-lo ou buscou ajuda. Um internauta procurou apenas convencê-lo a dar uma última olhada no mar antes do fim. Simon respondeu: ‘Fiz isso no domingo. Vejo vocês do outro lado’. A morte foi transmitida pela câmera do computador.”
A prática do suicídio vem de longa data. Desde a Antiguidade há relatos de pessoas célebres que se mataram: Cleópatra, no Egito; Aníbal, Códio, em Atenas; e muitos outros. Fernando Pessoa fala sobre o suicídio no poema assinado pelo seu heterônimo moderno e irritadiço, Álvaro de Campos:
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria… Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas.
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…[…]³
Usando o diálogo e a interrogação como recursos retóricos, Fernando Pessoa dirige-se a um leitor hipotético que chama de “tu” e questiona o desvalor do mundo, que circunda o ser humano, e o desconhecimento de seu mundo interior.
Os motivos que levam alguém a acabar com a própria vida, muitas vezes, são intangíveis. Aos que ficam, resta talvez uma carta, um bilhete desesperado. Para muitos, sobra o silêncio e a áspera interrogação.
Virgínia Woolf, importante escritora britânica, era doente emocional. Na carta que escreveu para Ethel Smith, compositora inglesa, ela revelou: “A loucura é aterradora, posso assegurar-te isto, e vale a pena tê-la em conta; na sua lava encontro ainda a maior parte das coisas acerca das quais escrevo.”. Passava por fases de profunda depressão, momento em que se recolhia e não produzia nada. Tinha dores de cabeça que a atormentavam e impediam-na de exercer as atividades intelectuais. Tentou o suicídio muitas vezes e, por fim, afogou-se no dia 28 de março de 1941. Despediu-se do marido, Leonardo Woolf, com o bilhete:
Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto – todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim, mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.
Virgínia Woolf
Ela encheu seus bolsos com pedras e entrou no rio Ouse, onde morreu submersa.
Nicole Kidman, à esquerda, no papel de Virgínia Woolf
O filme As horas5 entrelaça três histórias de gerações diferentes e focaliza o suicídio de duas personagens. Uma delas é de Virgínia Woolf, representada por Nicole Kidman. O papel lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Oscar de 2003. O outro é Richard Brown (Ed Harris), escritor vítima da aids. São dois motivos diferentes que levam as personagens à morte autoinflingida: a loucura e a aids.
A arte analisa o tema. Outro filme sobre a autodestruição é Night, mother.6 Por meio de um denso diálogo entre mãe e filha, a história narra a tentativa desesperada de uma mãe no propósito de convencer a filha a abandonar a ideia de suicídio. Sissy Space interpreta Jessie, uma pessoa de meia-idade. Está desempregada, tem um filho delinquente e um casamento dissolvido. Não vê saída a não ser a morte. A dor, os ressentimentos e o sentimento amoroso que unem mãe (Anne Bancroft) e filha (Sissy Space) são desnudados nesse sensível diálogo.
A loucura, a doença estigmatizada como a aids, o desemprego, a separação, a morte de uma pessoa da família, a desilusão podem levar a pessoa ao suicídio. A Psiquiatria estuda amplamente o fenômeno e o explica: as causas do suicídio são da ordem dos transtornos mentais, sociodemográficos, psicológicos, das condições clínicas incapacitantes. Os doentes mentais, vítimas de esquizofrenia, transtorno bipolar estão mais sujeitos ao suicídio.
Diante de toda a complexidade do tema, resta-nos pesquisar mais, estudar mais e priorizar, desde cedo, na educação, a importância do bem-estar subjetivo, destacando a compreensão sobre nossas emoções e a possibilidade de orientá-las para a autoestima e o gosto pela vida.
Bibliografia:
- GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: L & PM, 2001. p. 348
- MAIAKOVSI, Vládimir. A Sierguéi Iessiênin. Disponível em: https://mscamp.wordpress.com/2010/02/26/a-sierguei-iessienin-vladimir-maiakovski/. Acesso em: 25 jun. 2021.
- MASSAUD, Moisés. O guardador de rebanhos e outros livros. São Paulo: Cultrix, 2012.
- WIKIPEDIA. Virginia Woolf. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Virginia_Woolf. Acesso em: 25 jun. 2021.
- AS HORAS. Direção: Stephen Daldry. Produção: Robert Fox, Scott Rudin. Roteiro: David Hare (baseado no livro de Michael Cunningham). Música: Philip Glass. Estados Unidos: 2002. 1 DVD (114 min.). Gênero: Drama.
- 6. NOITE do desamor. Direção: Tom Moore. Produção: Alan Greisman, Aaron Spelling. Intérpretes: Sissy Spacek, Ane Bancroft, Ed Berke, Carol Robbins. Roteiro: Marsha Norman. Música: David Shire. Estados Unidos: Universal Pictures, 1986. 1 DVD (96 min.). Gênero: Drama.
João Roberto de Araújo é pensador, escritor de conteúdos para educação socioemocional e fundador da 50-50 SEL Solutions.