11 Nov 2019 | Entrevistas
A violência estrutural e a decorrente opressão dos necessitados
Teresa – Como você define a violência estrutural? Poderia ilustrar esse conceito?
João Roberto – A violência estrutural decorre de uma mecânica utilizada por diversas formas de poder que negligencia e limita o acesso de parte da população aos direitos básicos para ter uma vida digna, o que dá origem à exclusão social e pode gerar a revolta dos menos favorecidos. No século XIX, surge o romance de Émile Zola – O germinal – que realça a forte oposição de classes, a exploração dos empregados e a insubmissão da categoria trabalhadora. Há uma produção cinematográfica de 1993, de mesmo nome, inspirada no romance de Émile Zola. A história se passa em uma pequena vila de trabalhadores de uma mina de carvão da França.
O trabalho é insalubre, os pulmões dos mineiros ficam impregnados de carvão, e as pessoas correm risco de vida, pois há possibilidade de desabamento da mina. Do romance, um pequeno trecho que ilustra a exposição do trabalhador a agentes nocivos à saúde:
– E, é… Retiraram-me três vezes lá de dentro, em pedaços. Uma vez com o cabelo todo chamuscado, outra com terra até o bucho e a terceira com a barriga cheia de água, como uma rã… Foi então que eles viram que eu não queria morrer mesmo e começaram a me chamar de Boa-Morte, de troça. […]
– Há muito tempo que você trabalha na mina? […]
– Ah! Sim… Há muito tempo. Não tinha ainda oito anos quando desci, imagine, justamente na Voreux, e agora tenho cinquenta e oito. […] Cinquenta anos de mina, sendo que quarenta e cinco no fundo!¹
Os personagens se sentem devorados por essa condição, que Émile Zola mostra por meio da personificação do poço: “Só uma coisa ele compreendia perfeitamente: que o poço engolia de vinte e de trinta homens, e com tal facilidade que nem parecia senti-los passar pela goela”.
O salário é minguado e as famílias numerosas passam fome. A situação fica estável até que chega um rapaz com ideias revolucionárias e, instigados por ele, os famintos resolvem fazer greve. Há rebelião, muitos morrem em nome dessa causa. Segundo Jean-Marie Muller, a “atitude do homem em relação à violência é largamente determinada pela sua atitude em relação à morte”. Como se trata de uma obra realista, ambientada no século XIX, a teoria darwinista se sobrepõe. Os mais fortes sobrevivem aos mais fracos. Então, depois da greve e das mortes, os pobres voltam a trabalhar na mina sem conquistar as melhorias que reivindicaram.
Rousseau, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, afirma: “enquanto os homens se aplicaram exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes. […] Mas, desde o instante em que um homem teve necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.”.²
A obra de Émile Zola externa a desventura dos miseráveis de que fala Rousseau em suas considerações sobre o princípio da desigualdade entre os homens. Os mineiros são violentados pelo sistema social; ressalta-se nessa narrativa a disparidade entre vida e morte, bem-estar e mal-estar, contrapondo as classes sociais. A residência dos burgueses “cheirava a comidas boas que era uma delícia. As prateleiras dos armários estavam repletas de provisões a derramar”, ao passo que a casa dos empregados recendia a “um cheiro de cebola refogada, […] envenenava o ar quente, esse ar pesado, sempre carregado de um bafo de hulha.”.
A distância entre esses dois mundos tão díspares aparece nas descrições de espaço, no alimento que consomem, nas relações amorosas, nas formas de diversão, na oposição entre perdas e ganhos. Assim, essa obra põe em foco a violência estrutural e também a revolta dos grevistas. A história é de opressão, miséria e dor, da força econômica da empresa de extração carvoeira que submete seus empregados a condições desfavoráveis de trabalho. Segundo a filósofa alemã Hannah Arendt “nada é mais comum do que a combinação de violência e poder”. Na perspectiva das classes sociais, gera desigualdade e exclusão. Enquanto os abastados têm a mesa farta e se regalam com iguarias, os mineiros morrem por um naco de pão. Esta é a violência estrutural.
Bibliografia:
- ZOLA, Émile. O germinal. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 16-17, 31-32.
- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/desigualdade.pdf. Acesso em: 25 jun. 2021.
João Roberto de Araújo é pensador, escritor de conteúdos para educação socioemocional e fundador da 50-50 SEL Solutions.