07 Aug 2019 | Entrevistas
Entre a proteção e os maus-tratos
Teresa – Quais as raízes da violência?
João Roberto – Para falar sobre as raízes da violência, devemos observar a complexidade dos movimentos da nossa mente, que abriga pensamentos e emoções. Nosso cotidiano é marcado por movimentações afetivas e distinguimos, facilmente, dois sentimentos muito conhecidos. O primeiro é o da satisfação, que acontece quando nossas aspirações e necessidades são atendidas. Temos sede e bebemos água, temos fome e nos alimentamos; estamos carentes e alguém vem conversar conosco e nos acolhe. Assim é a satisfação, um sentimento que promove calor interno, uma acomodação positiva que nos deixa serenos pelo atendimento das nossas expectativas. Conhecemos essa emoção nas suas dimensões fisiológica, psicológica, filosófica e compreendemos a sua importância. Todavia, vivemos também, todos os dias, um sentimento oposto – o da frustração. Tenho sede, mas não há água; tenho fome, mas não há alimento; estou carente e ninguém me nota; telefono para alguém querido, mando-lhe flores e ele não acena para mim. Isso configura a frustração. Reconhecemos esse estado de insatisfação e sabemos o mal-estar que ele provoca. Daria para fazer um balanço no fim do dia, do mês, de um período da vida ou até da vida inteira, se nos percebemos com mais satisfações ou frustrações.
A frustração tem uma filha de nome muito conhecido: a agressividade. Ela nasce da decepção. É natural que a vida nos ofereça muitos nãos. Da mesma forma, é natural a frustração e, igualmente, a agressividade, que significa etimologicamente “colocar-se de pé e ir em direção a algo”. Assim, especialmente para os educadores, é importante a compreensão de que a agressividade não é necessariamente ruim. Existe a energia positiva, que nos coloca de pé e na direção de soluções e alternativas, para romper obstáculos e realizar nossas necessidades e sonhos. Ela nos tira do sofá e nos anima para caminhar. A realidade fala não, eu a enfrento e a contrario dizendo: sim, eu quero! Fico em pé e caminho na direção daquilo que procuro. Não podemos desejar que uma criança ou um adulto não seja agressivo. A agressividade é fundamental, pois promove a continuidade e o desenvolvimento da vida.
Por exemplo, no nono mês de gravidez, a mulher está desconfortável, ansiosa, e, por isso, fica insatisfeita. A criança sente-se igualmente incomodada com a insuficiência de espaço, também se frustra. Desse quadro de frustração de ambas, expresso em respostas fisiológicas e psicológicas, brota a vida. Assim, a nossa própria existência está ligada à aptidão física e mental de expressar construtivamente a agressividade. Há, no entanto, outra forma de manifestar as frustrações que é destrutiva. A essa chamamos de violência. É uma energia que se perverte e se desvia para diferentes formas de destruição, inclusive para a autodestruição. Ao nascer, é possível que a mãe não acolha bem seu bebê, não ofereça a ele o necessário berço amoroso. Não o acarinha, mas o rejeita. Na nossa condição de adultos, é difícil avaliar a profunda dor da rejeição física e psicológica no momento do espanto que é romper a placenta e respirar por si só. O nascimento é um desafio enorme. Enfrentar os novos e diferentes estímulos como o frio, os ruídos, as cores, pede ajuda e acolhimento, que, não sendo oferecidos, criam enorme desconforto, que gera um imprinting emocional negativo, o registro de que o mundo não é bom, aprazível e hospitaleiro, e sim um lugar escarpado e acre. Nesse contexto frio e árido, muitas crianças são deixadas em creches, retiradas às 5 horas da tarde por mães ou pais negligentes, que as devolvem, na manhã do dia seguinte, sem nem sequer abrir as fraldas e trocá-las.
Por outro lado, a violência já existente em alguns pais, exacerbada pelo consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas, amplifica a impaciência e a intolerância e promove, na relação com recém-nascidos, o doloroso fenômeno do “chacoalhão”, que fere a criancinha física e psicologicamente. A situação do bebê nascido nesse ambiente se complica ainda mais. Imagine o estado psicológico de um ser frágil, que clama por um colo quentinho, mas que, em vez do aconchego, é vítima da raiva de pais brutos. Imagine o nível de frustração que isso significa para ele, ainda com seu sistema neurocerebral em formação e sua compreensão sobre o mundo se estruturando. Há crianças, ainda em tenra idade e, por isso, necessitando de proteção, que presenciam violência doméstica, espancamentos, tapas, empurrões, internalizando medo, pavor, insegurança e mais frustrações. Existem crianças que são, de alguma forma, surradas todos os dias, que nunca foram abraçadas pela própria família e por ninguém, que jamais receberam elogios da mãe ou do pai. Muitas só conhecem a negatividade da crítica, as referências desabonadoras da família e dos vizinhos. Algumas delas escutam da própria mãe, repetidas vezes, a cruel afirmação: “Você é um estorvo na minha vida”. Mais tarde, na escola, ela será mais pobre de possibilidades, mais rígida, mais carente, reduzida e fragmentada intelectualmente. Difere da criança que recebeu afeto dos pais, sendo estimulada e elogiada. Esta entende os conteúdos mais facilmente porque tem menos ruídos internos. Contrariamente, aquelas que convivem com a violência têm sério comprometimento neurocerebral e a decorrente dificuldade de aprendizagem. É muito importante para nós, adultos, compreender as consequências desses ruídos.
Na história de vida de uma pessoa, no momento especial de iniciar seu processo de alfabetização, aos seis anos, ela poderá estar exposta à possibilidade de mais uma grave frustração. Com seu déficit afetivo, não acompanha os conteúdos que são normalmente elaborados pelos outros alunos, mas dificílimos para ela. Então, foge psicológica e fisicamente do ambiente da escola, que não consegue compreendê-la e ajudá-la. Assim, de frustração em frustração, vamos construindo um desequilíbrio perverso, promovendo o nascimento da violência, que fere e incomoda a todos nós. A violência não cai do céu; ninguém nasce violento, nem fica brutalizado de um momento para o outro. Ela é uma construção na história de vida da pessoa.
A violência nasce da violência. Uma cultura violenta favorece o desenvolvimento de seres brutos. A paz nasce da paz. Há sempre uma relação de causalidade recursiva. O indivíduo faz a sociedade, e esta, por sua vez, retroage construindo o indivíduo. Nós estamos produzindo a brutalidade que vai se manifestar em um futuro próximo. Hoje, vivemos a violência que começou a ser construída no passado. Estamos convocados para prevenir a selvageria que poderá surgir no futuro.
João Roberto de Araújo é pensador, escritor de conteúdos para educação socioemocional e fundador da 50-50 SEL Solutions.