07 Aug 2019 | Artigos
Construção da violência
Para melhor compreender esse fenômeno psicológico do desequilíbrio entre satisfações e frustrações, podemos imaginar uma história possível na condição humana e encontrada, ainda, em todos os grupos sociais. Uma jovem com uma história pessoal, familiar e social difícil, de dor e sofrimento, físico e psicológico, engravida. Em virtude de sua história de vida, ela tem uma relação negativa com a gravidez. Ela olha para a barriga e diz: “O que isso está fazendo ali, que eu não quero, que não gosto, que rejeito?!”. Sabemos que isso é possível e que um bebê pode sentir muita frustração mesmo antes do nascimento: frustração psicológica graças à rejeição afetiva e frustração fisiológica em virtude do desconforto com os movimentos, comida, drogas etc. Assim, antes do nascimento, o bebê já apresenta altos níveis de frustração. Ao nascer, é possível que essa mãe não o receba bem, não lhe ofereça o olhar e os gestos necessários e fundamentais de acolhimento amoroso. Não o acaricia, ela o rejeita. Em nossa condição adulta, é difícil avaliar a dor profunda da rejeição física e psicológica no momento do nascimento, aterrorizados com esse novo mundo que exige toda a proteção possível. O nascimento é um grande desafio. Respirar e enfrentar novos e diferentes estímulos exige ajuda e recepção amorosa que, se não oferecidas, criam grande frustração e promovem uma impressão emocional negativa, o registro de que o mundo não é bom, suave e solidário, mas duro e duro.
Nesse contexto, muitas crianças são deixadas em creches, são retiradas às cinco da tarde por mães ou pais negligentes que as devolvem, na manhã seguinte, sem nem mesmo trocar as fraldas. Por outro lado, a violência que já existe em alguns pais, exacerbada por bebidas alcoólicas e outras drogas, aumenta a impaciência e a intolerância e estimula, em relação aos recém-nascidos, o doloroso fenômeno do tremor, que dói física e psicologicamente e representa outra situação grave de frustração. Imagine o estado psicológico de uma criança abusivamente abalada com toda a raiva de uma fera e com a expectativa biológica e psicológica natural de cuidado e afeto. Imagine o nível de frustração que isso significa para uma criança, cujo sistema neurocerebral em desenvolvimento e compreensão do mundo ainda está sendo estruturado. Há crianças ainda em tenra idade que, portanto, precisam de proteção, que presenciam a violência doméstica, espancamentos, tapas, empurrões e internalizam o medo, o pavor, a insegurança e mais frustrações. Há crianças que, de alguma forma, são espancadas todos os dias. Há crianças que nunca receberam um abraço da família ou de qualquer outra pessoa. Existem crianças que nunca receberam elogios da mãe ou do pai. Há crianças que só conhecem a negatividade das críticas, referências decepcionantes da família e dos vizinhos. Há crianças que ouvem da própria mãe, repetidamente, a cruel declaração: “Você é um estorvo na minha vida”. Assim, há crianças que aos quatro, cinco ou seis anos apresentam uma história em que predominam as frustrações, radicalmente sobre as satisfações.
Essa história de frustrações revela uma deficiência afetiva profunda, e, nesse ponto, reside a questão central que requer atenção especial dos educadores: estudos e pesquisas indicam que o déficit afetivo gera déficit de aprendizagem. O déficit de afeto torna a racionalidade comprometida, limitada. Na pessoa com déficit afetivo, podem ser facilmente percebidas as limitações de sua capacidade de pensar com calma e promover a adequada construção lógica dos fatos. É mais pobre em possibilidades, mais rígida, menos flexível, mais indefesa, reduzida e fragmentada intelectualmente. É diferente da criança que recebe afeto, amor, incentivo e elogio. Essa criança entende mais fácil, tem menos ruído interno. Para nós, que somos adultos, é muito útil entender as consequências desses ruídos. Assim, internalizando-os em nós mesmos, podemos observar as limitações que eles nos impõem. A professora que briga com o marido ou a professora que briga com a esposa, com o filho ou os pais de madrugada e vai para a escola trabalhar pode descobrir que, nessas condições, é incompetente para fazer o que tem que fazer. Você pode dizer: “Por favor, não posso trabalhar hoje, não me sinto bem o suficiente para ir ensinar, preciso de ajuda”. Tudo isso por um momento específico de dificuldade afetiva. Imagine uma criança com uma história ao longo da vida de repetidas frustrações diante dos desafios que a escola e a própria vida representam? Crianças que recebem afeto, que recebem afeto físico, que percebem o afeto dos pais e da família desenvolvem condições neurocerebrais biologicamente diferenciadas que facilitarão seu processo de aprendizagem. Ao contrário, crianças que convivem com a violência apresentam grave comprometimento neurocerebral e consequente dificuldade de aprendizado. Muitas crianças com esse déficit afetivo estão hoje nas nossas salas de aula, são nossos alunos. Existe o risco de não percebermos essa realidade. Quando vamos a um hospital para visitar um homem ferido com múltiplas lesões, pernas, coluna e braços engessados, sua imobilidade é tão evidente que não podemos pedir-lhe que se levante e tome um copo de água. Metaforicamente, corremos o risco de pedir a uma criança mentalmente moldada e invisivelmente imobilizada um copo de água. Não estamos vendo que há um elenco interno que é a dor, que é o sofrimento, que são os ruídos que a imobilizam e que muitas vezes escapam à nossa percepção.
Crianças com esses ruídos internos parecem mais ativas, com mais movimentos, menos abastadas do que crianças afetivamente mais seguras e, portanto, mais serenas. A criança com déficit afetivo é a que mais corre, a que mais vai e vem, é a que mais se mostra, é a que mais sobe e desce, é a que mais chuta, é quem mais incomoda, expressando seu desconforto interior e buscando, ingênua e inconscientemente, e por que não dizer erroneamente, curar sua ferida. Como adultos e educadores, corremos o risco de adotar uma atitude de preconceito: “Olha, aquela criança corre para todo lado, é saudável, não se interessa por estudos porque não quer”, o que nos faz querer punir por corrigir. Na história de vida de uma criança, no momento especial do início de seu processo de alfabetização, aos seis anos, ela pode se expor, mais uma vez, à possibilidade de outra séria frustração. Com seu déficit afetivo, ela não consegue entender, porque é muito difícil para ela, o conteúdo que o restante dos alunos normalmente elabora. Assim, foge psicológica e fisicamente do ambiente escolar, que não consegue compreendê-la ou ajudá-la. Assim, de frustração em frustração, construímos um desequilíbrio perverso que promove o nascimento da violência, que fere e incomoda a todos.
A violência não cai do céu, ninguém nasce violento ou se torna violento da noite para o dia. A violência é uma construção na história de vida do indivíduo. Atualmente, estamos construindo a violência que se manifestará em um futuro próximo. Hoje, estamos vivenciando a violência que começou a se construir no passado. Hoje, somos chamados a prevenir a violência que pode surgir no futuro.