07 Nov 2019 | Artigos
O bem-estar subjetivo: a prioridade do século
Fundamentos da Educação Socioemocional
“O homem resume em si uma teia de contradições.”
Pascal
Introdução
A sociedade já viveu a utopia de estabelecer uma língua unificante dos povos, de entoar uma melodia global. O sonho da cooperação coletiva parecia estar próximo de ser concretizado com a chegada da internet, que reduz as distâncias e horizontaliza as relações humanas, em um crescente processo de inclusão digital. Ela dá visibilidade a indivíduos que antes passavam despercebidos. O estudante, o proletário, o intelectual, o político, o artista, a trabalhadora doméstica podem estar lado a lado nas redes sociais. Mas essa voz que foi dada a todos, com ampla liberdade de expressão – de maneira perversa –, discrimina o diferente, o negro, a mulher, o homossexual, dissemina e potencializa discursos de ódio e promove a tribalização. Na acepção do sociólogo estadunidense Richard Sennett, tribalização é “o impulso natural, animalesco, de solidariedade com os parecidos e agressão aos diferentes.”.1 É nesse sentido que se apresenta a rivalidade entre as tribos virtuais, protegidas em suas bolhas e relacionando-se apenas entre si. Elas têm o poder de aniquilar um indivíduo, o qual perde a consideração do outro em decorrência de uma opinião adversa publicada nas redes sociais.
Além dos crimes de preconceito, xenofobia, misoginia e racismo, um agravante se destaca: notícias comumente veiculadas nas redes sociais que não se comprometem com a verdade, configurando a pós-verdade, palavra que ganhou notabilidade a partir de seu registro no Dicionário Oxford. De acordo com este, a pós-verdade “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Tal definição realça um aspecto fundamental do comportamento humano: a força das emoções. Elas dirigem o modo de agir dos indivíduos diante dos fatos. No tocante a tal poder que move indivíduos e magnetiza multidões, afirma Henri Wallon (1879-1962), filósofo e psicólogo francês, “a coesão de reações, atitudes e sentimentos, que as emoções são capazes de realizar em um grupo, explica o papel que elas devem ter desempenhado nos primeiros tempos das sociedades humanas: ainda hoje são as emoções que criam um público, que animam uma multidão, por uma espécie de consentimento geral que escapa ao controle de cada um. Elas suscitam arrebatamentos coletivos capazes de escandalizar, por vezes, a razão individual”.2 As fake news publicadas no Facebook, por exemplo, influenciaram decisões políticas da atualidade, como sugerem algumas interpretações relacionadas à vitória de Donald Trump nas penúltimas eleições estadunidenses.
Essa liberdade de expressão, de comunicação, oferecida pela rede deu ao ser humano a oportunidade de se reunir com pessoas distantes, reencontrar antigos amigos, de ter acesso ilimitado às notícias globais em tempo real e às múltiplas possibilidades de entretenimento. Ademais, uma série de serviços está disponível para os internautas, como a videoconferência, a comunicação rápida realizada pelo e-mail, a compra de passagens on-line, o pagamento de contas, a chance de assistir a palestras; além disso, a oferta de produtos disponíveis para a compra é ampla e, com apenas um clique, o indivíduo tem a satisfação atendida. Contudo, o que rege essa relação em rede são as ações de desconectar-se e conectar-se a ela. Essa dupla – conexão/ desconexão – interfere na constituição dos laços humanos, que estão se tornando muito frágeis. A qualquer obstáculo e em pouco tempo, o indivíduo pode excluir pessoas que serão substituídas por outras.
Afere-se, após esse rápido exame do mundo digital, que a internet tem um poder muito grande, tanto para a construção quanto para a destruição, o que nos faz pensar que a lição do filósofo Heráclito – “o bem e o mal são uma coisa só”3 – aplica-se a esse contexto. Igualmente, como já observou Pascal no século XVII, o ser humano resume em si uma teia de contradições. Diante disso, do emaranhado de contradições presentes no atual momento histórico, destacam-se a necessidade e a importância de ampliar a compreensão humana, avançar para uma educação integral que considere, ao lado da dimensão racional, da fria lógica intelectual, a importância da subjetividade humana que nos governa para sentir e agir.
Ao olhar para o passado, cientistas, historiadores e filósofos constatam que a condição humana incluiu muita dor, muito sofrimento decorrente de aspectos básicos para a sobrevivência, como a carência de alimento e a precariedade de sistemas de saúde para o enfrentamento de doenças, de pestes, pela ausência de medicamentos capazes de sanar problemas que, hoje, são considerados simples.
Assim, o trinômio guerra, peste e fome representou a sombra funesta da morte no passado da humanidade. Além das dores das guerras, a fome abateu milhões de pessoas. Na Europa, em decorrência das grandes inundações e do clima adverso, plantações inteiras foram devastadas e deixaram muitas famílias morrerem à míngua. No reinado de Luís XIV, 15% da população francesa morreu de fome. A peste negra exterminou um terço da população europeia. A varíola e a gripe espanhola mataram milhões de pessoas, trazendo dor e sofrimento à população. Cidades foram arrasadas. Albert Camus, no livro A peste, faz uma reflexão filosófica sobre a condição humana ligada às pestes. Diz ele: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes como guerras, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”.4
Sabemos que ainda existem bolsões de fome em alguns países, porém eles decorrem mais de razões políticas, da incompetência logística em oferecer alimentos às populações mais carentes, da inadequada distribuição de renda, da falta de honestidade, e da incapacidade e não da capacidade de produção de gêneros alimentícios. Em contraponto à fome, atualmente, as pessoas estão morrendo mais por obesidade. Yuval Harari, no livro Homo Deus, lembra que “em 2010, a fome e subnutrição combinadas mataram cerca de um milhão de pessoas, enquanto a obesidade matou três milhões.”.5 Aos poucos, a humanidade foi vencendo essas adversidades, e o sofrimento produzido por elas foi reduzido.
Ao cotejar esses momentos do tempo, observamos que hoje os maus-tratos mudaram de lugar: eles nascem da falta de conexão dos indivíduos com seus semelhantes, da solidão, do alto nível de ansiedade, da perda de sentido na relação com o outro que culmina em um número elevado de suicídios. Deduz-se, portanto, que a grande negligência histórica foi o descuido com o bem-estar subjetivo. Essa realidade deve ser tratada com muito cuidado e se transformar no maior desafio da educação deste século. A partir de agora, o bem-estar subjetivo se transforma no principal item na agenda da humanidade.
A revolução científica e as contradições do progresso
O grande avanço se deu com a revolução científica, quando o ser humano tomou consciência de sua ignorância e passou a utilizar o empirismo como medida para solidificar os novos conceitos investigados. Houve, nessa época, uma ruptura com a Igreja, que até então tinha o domínio do conhecimento. Pensadores como Isaac Newton, Galileu Galilei, René Descartes, Francis Bacon, Nicolau Copérnico e Louis Pasteur foram responsáveis pelas grandes inovações no campo científico.
O encantamento com a ideia de progresso, que sustentou as revoluções industriais a partir do século XVIII, trazia em seu bojo o desejo de proporcionar bem-estar para todos. A energia elétrica, as fábricas, os automóveis, os aviões, as ferrovias, o telefone, a televisão, as vacinas, os antibióticos e tantas outras conquistas facilitaram a vida das pessoas, trouxeram, por exemplo, o conforto para a dona de casa, para o empresário, a longevidade para a humanidade e a redução da morte infantil. Esses benefícios reduziram muitas dificuldades, mas não garantiram o bem-estar subjetivo, a felicidade das pessoas.
As revoluções industriais culminaram em uma sociedade de consumo marcada pela suposta leveza que acabou revelando um doloroso peso. Na perspectiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, a sociedade, hoje, apresenta o seguinte paradoxo: “O automóvel, no início, era um instrumento ligeiro. Hoje, quando você anda de carro, precisa enfrentar os congestionamentos. Isso é pesado. Você tem o peso das coisas que voltam. Desta vez, não como dizia Nietzsche, pelo peso da metafísica e dos deuses, mas o peso pela abundância e pela excrescência do consumismo.”.6 Outro símbolo de leveza são os smartphones, usados para bate-papo com amigos e para jogos além de para o acesso a notícias, filmes etc. Desse modo, a grande maioria das pessoas, conectada às redes de comunicação, segue no peso do isolamento e na ilusão de fugir do tédio.
Outra dimensão que se destaca atualmente é a velocidade dos acontecimentos. O inesperado nunca esteve tão presente em nossa vida. “E quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e ideias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo.”.7 É intrigante observar esse postulado de Edgar Morin que nos remete à necessidade de investir na formação dos jovens, prepará-los para enfrentar a imprevisibilidade. Como aponta Nuccio Ordine, professor e filósofo italiano, em seu livro A utilidade do inútil, urge resgatar o mérito do conhecimento em uma sociedade hiperconsumista como a atual. Diz ele: “O saber apresenta-se por si mesmo como um obstáculo ao delírio da onipotência do dinheiro e do utilitarismo. É bem verdade que tudo se pode comprar. De parlamentares a juízes, do poder ao sucesso, tudo tem seu preço. Mas não o conhecimento: o preço a ser pago para conhecer é de outra natureza.”.8
Além do estímulo à aquisição do saber, deve-se incentivar a sensibilidade nos jovens e crianças, oferecer a eles uma excelente educação formal, com atenção particular a todas as modalidades artísticas e aos esportes, e, especialmente, brindá-los com educação para as emoções, para a subjetividade, que considera a importância da imaginação, da interioridade humana para compreender a vida. É chegado o momento de resgatar um aspecto que foi esquecido durante milênios: inserir na pauta do futuro a constituição do bem-estar subjetivo da humanidade.
Os flagelos contemporâneos
Vivemos uma crise de bem-estar. De acordo com as pesquisas da OMS (2015), há 322 milhões de depressivos no mundo, cuja doença é responsável pela incapacitação do indivíduo para enfrentar ações corriqueiras, como sair à rua, pagar contas, trabalhar, circular socialmente, relacionar-se bem com o outro. Tal enfermidade é uma das maiores causas de suicídio entre a população mundial. Por ano, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida, e essa é considerada a segunda maior razão de morte dos jovens entre 15 e 29 anos.
Lamentavelmente, dados atualizados estimam que, no mundo todo, meio milhão de pessoas morrem, a cada ano, vitimadas pela violência. No interior das famílias, atrás de portas fechadas, muitas crianças, mulheres e idosos sofrem maus-tratos, e grande parte dessa realidade não é catalogada pelas estatísticas.
O uso do poder que acomete as mulheres também explora sexualmente meninos e meninas, que ficam psicologicamente mutilados pelo abuso. Nas ruas, seja encoberta pelas sombras da noite, seja com o sol a pino, dissemina-se a delinquência juvenil. Alguns se reúnem em bandos e cometem pequenos delitos, mas outros estão ligados ao crime organizado; o embate entre o narcotráfico e as polícias também resulta em muitas mortes, medo e sofrimento. Em algumas cidades do mundo, as armas são engatilhadas vitimando suspeitos ou insuspeitos.
Na linha da violência social, destacam-se os atentados terroristas que representam muita angústia para as populações de várias partes do mundo. Movido por diferentes fanatismos, como político e religioso, e pelo analfabetismo emocional, o terrorismo expõe a intolerância aos iguais, produzindo a barbárie por meio da morte em massa e representando uma grande ameaça à segurança das pessoas. França, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Índia, Turquia, Paquistão e tantas outras nações perderam homens, mulheres e crianças em cenas de terror.
Nas relações sociais, há todo um capítulo de dificuldades: desemprego, fechamento de fronteiras a imigrantes, volta de nacionalismos exacerbados e fortalecimento do extremismo e da radicalização de direita e esquerda. A essa lista de obstáculos soma-se a incivilidade nos gestos, o desrespeito pelos direitos humanos. Ao analisar nosso tempo, Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo polonês, denominou as novas tendências da civilização como Retrotopia, título de sua obra póstuma. Conforme sua análise, a retrotopia configura-se em uma atitude de desvalorização do presente e do futuro e idealização do passado; é o avesso da utopia, sonhada por Thomas Morus. Bauman diz: “o futuro (outrora a aposta segura para o investimento de esperanças) tem cada vez mais sabor de perigos indescritíveis (e recônditos!). Então, a esperança, enlutada, e desprovida de futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada de equívocos e superstições. Com as opções disponíveis entre ofertas de tempo desacreditadas, cada qual carregando sua parte de horror, o fenômeno da ‘fadiga da imaginação’, a exaustão de opções, emerge.”.9 Em outras palavras, a ideia de imprevisibilidade dissemina o terror, acentua a desilusão na humanidade contemporânea, que busca soluções para os problemas atuais nas fórmulas usadas em um passado remoto em vez de engendrar um projeto para o futuro. Há uma crise de otimismo e esperança. A memória de um tempo pretérito é movediça, difusa, carregada de subjetividades, uma mescla de lembranças e esquecimentos. Para a construção do amanhã é preciso resgatar a esperança – como já disse Heráclito (535 a.C.-475 a.C.), filósofo pré-socrático, “sem a esperança, o homem não encontrará o inesperado”.10 Do mesmo modo, a formulação de M. Heidegger (1889-1976) nos projeta no futuro: “O começo não se encontra atrás de nós, mas se constrói diante de nós.”.11
Também, ao analisar o mundo contemporâneo, Adorno e Horkheimer expressam, na obra A dialética do esclarecimento, que “a sociedade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie.”.12 Tal retrocesso antropológico associado ao progresso histórico já fora observado por Jean-Jacques Rousseau no século XVIII. Dominado pelo sabor das conquistas, o ser humano sufocou determinados valores como a bondade, a solidariedade, o altruísmo, dando lugar à barbárie. Essas realidades nos mostram que, ao lado dos ganhos, temos, também, as perdas.
Ao averiguar as perdas fundamentais que ocorreram nos últimos tempos no campo da educação, Jiddu Krishnamurti (1895-1986), filósofo e educador indiano, afirma: “a educação moderna redundou em completo malogro, por ter exagerado a importância da técnica. Encarecendo-a em demasia, destruímos o homem.”. E adverte: “Desenvolvendo capacidades e eficiência, sem a compreensão da vida, sem uma percepção total dos movimentos da mente e do desejo, tornar-nos-emos cada vez mais cruéis, e isso significa fomentar guerras e pôr em perigo nossa segurança física.”.13
Verifica-se, com base nessas considerações, o quanto as revoluções científicas e tecnológicas beneficiaram a humanidade, mas as relações interpessoais ainda clamam por cuidados. Os conflitos entre os casais, no interior das famílias, entre pais e filhos, a dor psicológica e o mal-estar subjetivo são o grande desafio que deve estar presente na agenda da humanidade daqui em diante.
A reforma do pensamento: a visão poliocular e os reflexos na educação
A partir do paradigma da complexidade, e segundo as sábias considerações de Edgar Morin, “ver, perceber, conceber, pensar são interdependentes. São termos inseparáveis. Tanto é preciso pensar para ver como ver para pensar. Pensar permite conceber e conceber permite pensar. Cada um desses termos tem sua própria carência, sua própria falta, seu próprio limite. O olho da rã não vê a forma da sua presa, a mosca, mas percebe o movimento de seu voo. E nós, que vemos? O que é que nos escapa? Parece que certos olhares só percebem a forma e outros, só o movimento. Não devemos, então, fazer com que os olhares se comuniquem, dialoguem? Precisamos multiplicar os pontos de vista e as escalas para chegar a uma visão poliscópica. Precisamos de comunicação e de diálogo com olhares diferentes dos nossos. Precisamos de uma visão poliocular.”.
Essa visão se contrapõe à fragmentação do saber que compõe o pensamento linear, binário, simplificador, cuja base filosófica está em René Descartes (1596-1650), o “pai do racionalismo moderno”. O método analítico cartesiano foi e continua sendo referência científica para a compreensão da realidade. Fundamentadas por esse método, despontaram as múltiplas fragmentações da realidade, a saber: divisão entre o mundo material e espiritual; separação entre a objetividade e a subjetividade, a mente e o corpo, a religião e a ciência etc. Assim, o erro de Descartes foi sustentar-se unicamente na racionalidade pura. Na visão de Edgar Morin, “Descartes não percebeu a natureza de sujeito de todo ser vivo e situou o sujeito fora de todo enraizamento biológico. Ele operou, então, uma disjunção entre o sujeito cogitante e o corpo, instituindo uma separação paradigmática entre a res cogitans (a coisa pensante) e a res extensa (o corpo).”.15
A visão linear fracassa e não consegue abarcar a complexidade dos fenômenos humanos e sociais. Estamos diante do desafio de reformar o pensamento e, como afirma Morin, reunir os conhecimentos separados e ser capazes de abarcar o paradoxo da unidade e da multiplicidade, suas relações interdependentes e a impermanência. Vale, ainda, destacar o caráter recursivo do pensamento complexo. Morin, mais uma vez, ao falar da causalidade recursiva, usa a simbologia da árvore cujos galhos tocam o chão e, por sua vez, tornam-se raízes, de onde nasce um novo tronco. Diz ele: “O pensamento complexo é recursivo. Ele se alimenta também de si mesmo e se recria o tempo todo. Ao descobrir o meu método, ele se voltou sobre o meu pensamento me obrigando a pensar nas suas consequências políticas, pedagógicas e filosóficas. Eu produzi um método, que, por seu turno, me produziu ao longo da vida.”.16 O conceito de recursividade, do mesmo modo, foi observado na Cibernética – ciência que estuda os mecanismos de comunicação e de controle nas máquinas e nos seres vivos – pelo austríaco Heinz von Foerster (1911-2002), o que ampliou a compreensão do paradigma complexo, ressaltando a ideia de que todo conhecimento deve abrigar o autoconhecimento.
A visão da complexidade e a compreensão da causalidade recursiva devem estar presentes nos processos educativos; devem fundamentar toda a educação do futuro. Immanuel Kant (1724-1804) considera a sensibilidade como raiz da cognição humana, ou seja, a aquisição do saber não ocorre de forma fria, neutra, sem subjetividade. Ao levar em conta essa ausência de neutralidade, Kant evidencia o sujeito do conhecimento, suas possibilidades e fronteiras. Com base na observação de Kant, Edgar Morin, mestre ímpar nas reflexões sobre a complexidade, afirma: “Não se trata de resvalar para o subjetivismo: trata-se muito pelo contrário de enfrentar esse problema complexo em que o sujeito cognoscente se torna objeto do seu conhecimento ao mesmo tempo em que permanece sujeito.”.17
Outro reforço importantíssimo para a reforma do pensamento na direção do paradigma da complexidade, que projeta as novas bases da educação, é encontrado em Blaise Pascal (1623-1662), físico, matemático, filósofo e teólogo. Segundo ele, a parte só pode ser compreendida em função do todo e vice-versa. Destaca, assim, a importância da contextualização. Desse modo, para apreender a constituição de algo e o seu sentido, é fundamental inseri-lo em um contexto. Nas palavras de Pascal: “E como todas as coisas são causadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas e todas se acham entrelaçadas por um vínculo natural e insensível que liga as mais distantes e as mais deferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.”.18 Com base nessa premissa, a elaboração do saber, por meio da contextualização, deve abarcar as diversas dimensões do aprendiz, isto é, suas questões emotivas, materiais e não apenas mentais.
Esse ponto de vista multiocular já era entrevisto nas reflexões de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo alemão. Em seus estudos, está presente a dialética em que a contradição não é negada, mas considerada parte intrínseca do próprio movimento do pensar. Ele afirma “que existe outro concreto além da experiência existencial, que é o da complexidade que percebe diversas faces de uma mesma realidade, inclusive a contraditória.”.19 A ideia a que se chega, a partir de Hegel, não é o fim do movimento reflexivo, mas o início de um jogo que nunca termina.
Da antropologia freudiana às profundezas da alma humana na literatura
Na busca do conhecimento, do saber, da compreensão do real pelo viés da complexidade, é preciso, igualmente, considerar as contribuições freudianas e das grandes obras literárias, tanto na prosa quanto na poesia.
Freud investiga o aparelho psíquico na sondagem da subjetividade humana. Ele identifica os conflitos, a lucidez e a loucura, as sombras, os sonhos, as cavernas mais profundas do ser humano, os demônios presentes em cada um e na relação consigo e com o mundo. Seus estudos desvendam muitos mistérios da natureza do ser humano em sua multiplicidade e unidade.
Na linha da investigação da condição humana e, particularmente, da psique, há, também, a literatura que, ao lado da ciência, revela o ser humano. Nesse sentido, Dostoiévski (1821-1881), escritor e filósofo russo, afirmou: “Com um realismo pleno, descobrir o homem no homem… Chamam-me de psicólogo: não é verdade, sou apenas um realista no mais alto sentido, ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana.”.20 Quem lê Crime e castigo, romance psicológico de Dostoiévski, é capaz de penetrar o universo sombrio de Raskolnikov, atormentado pela culpa, em decorrência do crime que cometeu. Ele faz uma análise cirúrgica da mente oprimida, das fantasias, dos medos absurdos, da opressão psicológica.
Ainda na literatura, Marcel Proust (1871-1922), em sua exemplar obra Em busca do tempo perdido, revela a profunda percepção da alma e dos sentimentos humanos. Nessa narrativa, Proust faz avanços e recuos temporais, longas digressões e extensões, uma oportunidade para que o leitor se espelhe na obra lida e passe a compreender a si mesmo e a complexidade que envolve a condição humana.
Diversos poetas, dramaturgos e prosadores trouxeram à tona dimensões humanas extremamente sensíveis e revelaram as pungentes dores e sofrimento humanos. Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Mallarmé, Shakespeare, Cervantes e tantos outros representaram em suas obras uma estratégia de libertação do espírito por meio da sublimação dos desejos mais íntimos ou pela expansão do inconsciente. A poética toca o ser humano em sua delicada emoção, é companheira na solitude, é epifania. Muitos são os caminhos visitados pelos poetas que ecoam no âmago do leitor.
Filósofos, psicólogos, literatos e artistas costuraram o pano de fundo de nossas reflexões e revelaram a necessidade de uma nova abordagem educativa, na direção de uma educação integral, alicerçada pelo bem-estar subjetivo.
A Educação Emocional e Social
Em virtude das altas taxas de depressão, ansiedade, suicídio e do sofrimento interno humano, a pauta da humanidade está mudando. Como sabemos, as transformações culturais ocorrem a partir da educação que, hoje, caminha para uma linha libertadora que acolhe a diversidade. Se olharmos ao redor do mundo, observaremos exemplos concretos dessa mudança.
Há países que procuram resgatar as alegrias da infância, infância esta que é o pilar de toda a existência. Assim, já existem escolas onde não há a pressa em ensinar letras e números aos pequenos. Nelas, compreende-se a relevância de proporcionar a eles a oportunidade de brincar, de socializar-se, de ser feliz, usando como recursos pedagógicos muita música, jogos e várias atividades lúdicas. Outras escolas inovam os costumes com a troca da tradicional fragmentação dos conteúdos por temas multidisciplinares. Na perspectiva do paradigma da complexidade, essas instituições já promovem a necessária e fundamental transição do pensamento linear cartesiano, separador e disjuntor, para a compreensão de que tudo está interligado, dependente e que o conhecimento não é compartimentado. Há escolas, ainda mais arrojadas, que alteram o espaço físico escolar. Em vez das costumeiras salas fechadas, com carteiras enfileiradas, os educandos se agrupam em espaços abertos, e as carteiras são substituídas por móveis mais confortáveis e organizados de modo a sugerir mais aproximação, diálogo e cooperação.
Em contraponto a esses modelos maravilhosos de educação, há outra realidade que prevalece no mundo, a de crianças e adolescentes que vivem em situações de risco, vulnerabilidade, desintegração familiar, abandono e negligência dos pais.
Ao verificar essas duas realidades, ressalta-se o papel importantíssimo da Educação Emocional e Social, a fim de atender não só às crianças acolhidas em escolas bem estruturadas e com propostas pedagógicas inovadoras, mas também, e principalmente, a enorme quantidade de crianças e jovens maltratados na família e na sociedade, para os quais a escola representa a única oportunidade de encaminhamento social e profissional.
Há crianças, jovens e adultos que não conseguem se concentrar nem nas aulas nem no cotidiano. Estão impregnados de emoções desconfortáveis como a raiva, o ciúme, o medo, a culpa, a ansiedade, a rejeição, enfim, todas essas emoções que precisam ser conscientizadas e reguladas para levar a comportamentos criativos e construtivos. Caso não haja um processo educativo e orientador, essas emoções desagradáveis poderão bloquear a aprendizagem, na escola e na vida, reforçando as altas taxas de analfabetismo emocional, de sofrimento físico e mental, de subdesenvolvimento e de violência na família e na sociedade.
A constatação dos conflitos, das dores psicológicas, das múltiplas formas de violência que intoxicam a vida dos indivíduos pede uma nova intervenção educativa. Para essa operação, estudiosos da Educação Emocional e Social de várias partes do mundo empenham-se em pesquisar e desenvolver programas para atender ao item mais importante da nova pauta da humanidade: o bem-estar subjetivo.
Na consciência de que as emoções orientam todas as ações humanas e de que por meio delas vamos à guerra ou construímos a paz, destaca-se o imperativo da Educação Emocional e Social. Ela poderá trazer paz e harmonia aos indivíduos, a regeneração de valores fundamentais para uma convivência coesa e saudável entre as pessoas. Ela poderá aquietar e apaziguar nossas mentes aflitas e carentes de significados mais profundos do ato de viver.
João Roberto de Araújo / 2018
Referências
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